Por Flávio Gordon
Estou lendo A Morada do Homem: Um estudo sobre o Iluminismo, lançamento recente do filósofo e historiador Edgard Leite, presidente da Academia Brasileira de Filosofia. Embora esteja ainda na metade da obra – sobre a qual pretendo escrever uma resenha completa ao final da leitura –, já encontrei nela uma série de preciosidades intelectuais que merecem já um comentário precoce, sobretudo pelo fato de o autor oferecer uma análise densa e bem documentada sobre um assunto que também me é muito caro, a saber: a relevância do pensamento iluminista no modo como o Ocidente contemporâneo se organiza e se enxerga culturalmente.
O tema geral de A Morada do Homem é o ataque iluminista à ideia de transcendência, tendo por consequência uma redução de toda a realidade às suas causas e manifestações materiais, naquilo que ficou conhecido, sobretudo depois da crítica kantiana, como “o fim da metafísica”. Mas, de modo a escapar do risco de se perder em tal generalidade temática, o autor toma a inteligente decisão de abordar o problema a partir de um fenômeno particular e bem delimitado no seio do movimento iluminista: a crítica aos milagres.
Em toda a história do Ocidente judaico-cristão, os milagres foram entendidos como sinais da existência de uma ordem superior à realidade material e ordinária, a qual, de modo excepcional (mas menos raro do que o racionalismo poderia supor), invade esta última sob a forma de um mistério. E, como se sabe, parte da agenda cultural consistiu em negar essa possibilidade, reduzindo-a a toda sorte de explicações materialistas ou a atos de ilusionismo por parte dos poderes terrenos interessados em ludibriar os fiéis. Nas palavras do autor:
“A crítica aos milagres é, portanto, um movimento que se insere na crítica geral ao sentimento religioso, realizado pelo Iluminismo. Ela tem uma centralidade na argumentação egocêntrica que se instala entre os intelectuais e todos os que percebem como é agradável tornar-se, de alguma forma, senhor do mundo. É fundadora de muita coisa porque, a partir dela, estabelece-se uma crítica à vivência sensível de Deus. E como tal experiência passa a ser considerada, principalmente, um equívoco humano, pois fruto da ignorância de suas razões reais.”
E Edgard Leite destaca, em seguida, um ponto que me parece fundamental no processo de radical secularização da existência que tomou de assalto o Ocidente, descrita pelo ideólogo marxista Antonio Gramsci como “um historicismo absoluto, a mundanização e terrestrialização absoluta do pensamento”. Escreve o autor: “O Deus da Bíblia adquire a feição de qualquer outra coisa, menos a de um Deus criador”.
Tendo no Iluminismo o seu carimbo oficial para a história, esse processo tem origens mais remotas, como reconhece Leite. E são algumas dessas origens que eu gostaria de abordar brevemente no artigo de hoje, antes de poder produzir uma análise mais cuidadosa e merecida do livro A Morada do Homem. Quero abordar, em especial, a ideia de que “Deus adquire a feição de qualquer outra coisa”, ou seja, de que, no caminho da secularização do pensamento e da própria teologia, Deus passa a ser concebido como um objeto entre outros, algo que se encontra no raio de alcance da razão natural humana. Trata-se de um longo processo intelectual que o teólogo William Placher batizou de “domesticação” de Deus.
Diz-se habitualmente que o Iluminismo (sobretudo na França) introduziu a fé na autossuficiência da razão humana. Em seu desdobramento mais radical, o movimento caracterizou-se por uma profunda ruptura com a religião judaico-cristã. Críticos culturais como D‘Holbach, La Mettrie, Condillac, Condorcet e Diderot rejeitaram absolutamente noções como as de divindade e transcendência. Para esses autores, a natureza empiricamente observável passou a ser o domínio último de toda realidade. Se a natureza era acessível à razão humana, bastava a razão para abarcar o real em sua totalidade. Data desse período o início da ideia de uma ruptura irreversível entre razão e religião.
No entanto, essa ideia não foi sempre dominante nem mesmo durante o Iluminismo. Para um autor como Kant, por exemplo, a autossuficiência da razão humana não era considerada necessariamente antagônica à religião. O alvo de Kant eram, antes, os aspectos “irracionais” da religião, dentre eles – voilá! – a crença em milagres, por exemplo. Mas a visão de Kant tinha antecedentes naquilo que, na Idade Média, era chamado de “teologia natural”, um ramo da teologia segundo a qual, ademais de criar a natureza, Deus fizera com que ela criasse a si própria por meio das assim chamadas “leis naturais”.
A teologia natural medieval era uma alternativa à chamada “teologia da Revelação”, o domínio da teologia que lidava diretamente com as Sagradas Escrituras e com a doutrina da Salvação. Essa divisão no campo teológico remonta ao pensamento dos padres Clemente e seu discípulo Orígenes, conhecidos como os “platonistas de Alexandria”. No segundo século da Era Cristã, ambos propuseram a tese de que Deus manifesta sua essência por meio de dois livros, o da natureza e o das Escrituras. A doutrina de Clemente e Orígenes foi posteriormente desenvolvida por Santo Agostinho, que consagrou a distinção entre os ensinamentos bíblicos sobre assuntos espirituais e a descrição do mundo natural.
A noção de que o mundo natural pode ser compreendido independentemente do mistério da Revelação é decorrente de uma concepção racionalista de Deus, desenvolvida por teólogos como Santo Anselmo de Cantuária, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Essa concepção racionalista de Deus atinge a modernidade graças ao pensamento de René Descartes. Mas Descartes introduz diferenças profundas em relação à filosofia medieval cristã, particularmente em relação ao racionalismo tomista.
São Tomás de Aquino conferia um papel importante à razão humana, embora lhe submetesse, em última instância, à autoridade divina e à Revelação. Para ele, a razão humana era finita e limitada por sua própria natureza, consistindo numa centelha parcial e fugidia da razão divina. Descartes rejeitou a metodologia tomista em favor da crença na autossuficiência da razão humana, concebendo Deus – o fundamento último que garantia a realidade exterior – como plenamente apreensível pela razão. Tamanha confiança no poder da razão humana foi inspirada, obviamente, pelo imenso sucesso das ciências matemáticas modernas ao longo dos séculos 16, 17 e 18, resultando na bem conhecida húbris iluminista.
Os teólogos medievais já haviam alertado para o perigo da húbris. O racionalismo de Anselmo, Agostinho e Aquino não chegava ao ponto de dispensar Deus, simplesmente porque, ao contrário dos modernos, os teólogos medievais concebiam a ideia do mal absoluto agindo no mundo. Falha e sujeita à ação do mal, portanto, a razão não podia seguir sozinha, sem o auxílio da intervenção divina, tida por suma perfeição e infalibilidade.
O Iluminismo introduziu a fé na autossuficiência da razão humana. Em seu desdobramento mais radical, o movimento caracterizou-se por uma profunda ruptura com a religião judaico-cristã
São Tomás de Aquino, em especial, afirmou a transcendência divina por meio de sua doutrina da analogia. Segundo ele, ao falar de Deus, os homens corriam o risco de “domesticar” a sua transcendência e transformá-la em sua própria criação. Nesse sentido, o “Doutor Angélico” chamou atenção para a incapacidade da linguagem humana em comunicar a transcendência, pois, tendo sido desenvolvida pela criatura para se referir à criação, ela se revelava enganosa quando aplicada a Deus. Isso não significava a impossibilidade de especular racionalmente sobre Deus, contanto que houvesse sempre o reconhecimento de que a linguagem humana só poderia aplicar-se a Deus de maneira equívoca e analógica.
Nesse sentido particular, a formulação de São Tomás recorda a de outras tradições religiosas e filosóficas antigas, que recorreram a símbolos explícitos para indicar a inadequação da linguagem humana em representar a transcendência, chegando mesmo a incluir essa inadequação em sua própria definição. Assim, por exemplo, no Tao Te Ching chinês (atribuído ao sábio Lao-tzu, que viveu no século 6.º antes de Cristo), é dito que “o tao que pode ser enunciado não é o Tao eterno. O nome que pode ser nomeado não é o Nome eterno”. O texto diz ainda que o Tao é imanente a tudo que existe, constituindo a essência de todas as coisas. No entanto, o Tao propriamente dito não é como os elementos da natureza e, portanto, não pode ser genuinamente descrito ou mesmo concebido: “Por falta de um nome melhor, eu o chamo Tao”.
Uma noção similar surgiu na Índia aproximadamente no mesmo período. Na tradição dos antigos escritos védicos conhecidos como Upanixades, o Brahman é descrito como o princípio transcendente que subjaz à verdadeira essência de toda a realidade física e a constitui. O Brahman é dito ser “além do nome e da forma, além dos sentidos, inexaurível, sem começo, sem fim, além do tempo, do espaço e da causalidade, eterno, imutável”.
A ideia tomista de um discurso necessariamente analógico sobre Deus guarda similaridade ao sentido metafísico dos conceitos de Tao e Brahman. A intenção de Tomás era manter o senso de mistério transcendente e afirmar a irredutibilidade divina à razão humana, marcando uma diferença ontológica, qualitativa, entre Deus e os homens. Para São Tomás, antes que objeto da razão humana, Deus é a condição mesma dessa razão. A razão humana não pode capturar plenamente o sentido de Deus, mas apenas testemunhar parcialmente a atuação da racionalidade divina.
A Idade Moderna é marcada justamente por um progressivo esvaziamento da linguagem e do simbolismo da transcendência. O senso da analogia vai sendo progressivamente rejeitado e os homens passam a falar sobre Deus de igual para igual. A modernidade testemunhou a emergência daquilo que Amos Funkenstein chamou de uma “teologia secular”. Em suas palavras:
“Uma nova e única abordagem para questões divinas, uma espécie de teologia secular, surgiu nos séculos 16 e 17, com uma curta carreira. Era secular no sentido de ter sido concebida por leigos para leigos. Galileu e Descartes, Leibniz e Newton, Hobbes e Vico não eram clérigos ou não adquiriram um grau avançado em divindade. Eles não eram teólogos profissionais, e ainda assim trataram de questões teológicas em profundidade. Sua teologia também era secular no sentido de estar orientada para o mundo, ad saeculum.”
Funkenstein chama a atenção para a dissolução da linguagem da transcendência, destacando particularmente as mudanças que o conceito de Deus sofreu a partir daquele período, quando Deus começou a ser concebido não mais como um mistério ontológico transcendente, mas como uma “substância” específica no mundo, um “domínio” racionalmente identificável. Funkenstein refere-se a esse processo com o termo “transparência de Deus”, indicando o abandono da tese tomista. Escreve ele:
“Não quero dizer necessariamente que os pensadores do século 17 sempre afirmavam saber mais sobre Deus do que os teólogos medievais. Para alguns deles, Deus permanecia um deus absconditus, sobre o qual pouco pode ser conhecido. O que quero dizer é que eles afirmavam que o que sabiam sobre Deus, fosse muito ou pouco, eram ideias precisas, claras e distintas.”
A teologia moderna é, portanto, caracterizada por essa “domesticação de Deus” de que fala William Placher. Se, de início, a transcendência não deixa ainda de ser completamente reconhecida (o que ocorreria definitivamente no Iluminismo), ela se torna, todavia, cada vez mais uma questão de epistemologia e não de ontologia. Essa mudança é representada paradigmaticamente no argumento transcendental de Kant, para quem Deus se tornou um postulado necessário para conferir sentido à experiência humana da moralidade, mas reservado ao domínio incognoscível da “coisa-em-si”. Criticando a pretensão cartesiana de apreender Deus por meio da razão, Kant sugere que o ser humano vive necessariamente como se houvesse um Deus. Deus passa, em suma, a ser um imperativo categórico. Com isso, Kant inaugura, em grande medida, o agnosticismo moderno. Resta que, da ideia de viver “como se houvesse Deus”, muitos agnósticos passaram sem dificuldade à ideia de viver como se não O houvesse.
Para alguns autores, a ideia de que é possível compreender racionalmente o modus operandi divino teve origem na teologia de John Duns Scott, filósofo franciscano do século 14. Scott contestou diretamente a doutrina tomista de uma distinção ontológica absoluta entre Deus e os homens. Segundo ele, só havia um Ser único e unívoco, partilhado pela criatura e pelo Criador.
Como explica o grande teólogo católico Hans Urs Von Balthasar, Duns Scott introduziu essa mudança fundamental em relação à concepção tomista com o objetivo de garantir o lugar da “razão” na teologia cristã. A razão passa a apreender o Ser como o conceito essencial e ilimitado, e, portanto, ela transcende a distinção entre seres finitos e infinitos:
“O conceito não possui apenas universalidade lógica (expressiva), mas também universalidade metafísica, pois captura o Ser em sua generalidade objetiva, de modo que pode ser aplicado de maneira unívoca ao Ser infinito e ao Ser finito, isto é, a Deus e ao mundo, à substância e aos acidentes, ao ato e à potencialidade.”
Nessa interpretação, Duns Scott postula uma continuidade ontológica entre Deus e os homens, um movimento intelectual que, segundo vários autores, marca o início do teísmo moderno e, no limite, da própria cosmovisão moderna. A partir de então, o mundo passa cada vez mais a ser visto não em relação a um nível ontológico superior, mas como autossuficiente e autoexplicativo. Deus deixa de ser completamente transcendente e passa a adquirir uma delimitação precisa nessa ontologia unidimensional e mundana. Abandona-se uma ontologia Sub specie aeternitatis em nome de uma ontologia Sub specie Spinozae, como diria Nietzsche. E o ateísmo materialista propriamente dito seria um desenvolvimento posterior e interno a essa concepção.