Marco Antonio Spinelli*
Vira e mexe eu acabo implicando com uma feminista ou com alguns feminismos. Recentemente, Chico Buarque afirmou que não iria mais cantar o clássico “Com Açúcar e com Afeto”, música que ele fez para a amiga Nara Leão, que pediu uma música sobre uma mulher sofredora, segundo um depoimento do Chico. Houve uma grita feminista de que a música celebrava um relacionamento abusivo. Para quem não tem idade para entender o debate, a música do Chico é de 1967, e conta a história de uma mulher que, com açúcar e com afeto, faz o doce predileto do marido, para ele parar em casa. Ele sai para o trabalho, e, na volta de casa, para de bar em bar, puxa assunto de futebol, estica os olhos para as outras mulheres e chega em casa bêbado, pedindo perdão, prometendo que não faz mais aquilo. Ela termina sabendo que ele não vai cumprir a promessa, vai esquentar seu prato e abre os braços para o cachaceiro. Um pesadelo feminista. Ou pior, a realidade de quase um terço de nossos lares, onde um homem de família gera situações de abuso e traumas profundos em esposa e filhos com bebedeiras e abusos alcoólicos e violências de todos os tipos. Todos os tipos. Se alguém acha que uma música belíssima de Chico Buarque, dos anos sessenta, que tem uma personagem (alô, alô, gente: uma personagem) que perdoa e abraça o homem que chega em casa maltrapilho e maltratado, vai servir de estímulo à resignação e aceitação do abuso, parece uma piada de quem nunca viu isso dentro de um consultório.
Talvez a parte da música que mais representa o horror do abuso seja aquela em que a personagem afirma que fez o doce para o marido ficar em casa. A fantasia do Patriarcado, de que a responsável pelo casamento é a mulher e ela que tem que “segurar o marido em casa”, isso sim, gera muito sofrimento e abusos. A música fala sobre uma fantasia masculina profunda, de ser perdoado e compreendido pela mulher. A fantasia de ter a ferida contida nesse abraço. É para atender essa fantasia? Claro que não. Cresça e apareça, e deixa de ser moleque, rapaz. Mas é uma fantasia.
Uma outra música de Chico, “Mulheres de Atenas”, também foi alvo da militância. Não sei se ele se inspirou em Penélope, mas seria legal se houvesse essa relação.
Penélope era casada com Ulisses, rei de Ítaca. Ele partiu para a guerra e a deixou com um bebê de colo para criar. Os generais gregos partem para a guerra com Tróia, e Ulisses é decisivo para a vitória, depois de dez anos. Quando ele tenta voltar para a sua ilha, acaba sofrendo uma infinidade de perdas, derrotas e percalços que o deixam perdido nos mares, sem conseguir voltar para sua amada por mais dez anos. Ninguém sabia seu paradeiro e foi dado como morto. No decorrer desse tempo, apareceram vários e vários pretendentes, exigindo que Penélope escolhesse um deles como marido. Este seria o novo rei de Ítaca. Essa é a trama de um dos maiores livros já escritos nesse planeta, que é “A Odisseia”.
A mãe de Ulisses, Anticleia, morre na angústia de achar que seu filho tinha morrido. E Penélope gastando fortunas com os caras acampados em sua casa, exigindo a sua mão. O que ela fez para manter os caras esperando sem matá-la, ou a seu filho? Prometeu que estava tecendo um manto para seu sogro, para ele usar em seu leito de morte. Tecia durante o dia e desfazia o trabalho durante a noite. Um trabalho que não acabava nunca. Eu fico particularmente impressionado com essa passagem. O trabalho sem esperança. A única motivação era esticar ao máximo a decisão, para esperar que algo viesse em seu socorro. As pessoas podem falar em Resiliência para Penélope? Ela é a própria definição da resiliência, um termo derivado da engenharia, para materiais resistentes e flexíveis, ao mesmo tempo. Penélope resistia às pressões e tinha jogo de cintura para contorná-las, mesmo em situação de mais profunda desesperança. Resistência e flexibilidade.
Eu considero Penélope um símbolo do que há de mais profundo no Feminino, um feminino combatido, na minha forma de ver, equivocadamente, por alguma militância. O Feminino é a origem e a base de toda a vida. Tudo sai dele. Como tal, é capaz de sustentar a vida seja qual for a circunstância. E a espera.
Quando o seu amado consegue voltar para casa e trucidar os pretendentes folgados, ela se nega a recebê-lo, depois de vinte anos, em seu quarto. Ele entende o cuidado de sua esposa. Ela manda colocar a sua cama fora do quarto. Ele sabe que é um teste. Ele escavou uma árvore imensa para fazer a cama do casal. Ela não pode ser movida. Esse era um segredo que só os dois conheciam. Ele prova que ele é o cara que ela esperava.
No mundo em que todos querem resolver tudo num clique, Penélope representa tudo que temos que esperar, tolerar e tecer para realizar nosso caminho. Sobretudo, representa aqueles momentos de nossa vida em que não há nada a fazer. Só esperar. Um dia de cada vez.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa” |